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Imigração e violação dos direitos humanos: um capítulo que não merece reprise

Crianças migrantes se expressam por meio da arte. Foto: Sergio Ricciuto Conte

Publicado no jornal O São Paulo no dia 10 de setembro de 2014

Zoom sobre a mídia, que, a serviço do medo, pode reforçar estereótipos e incentivar a xenofobia

“Minha vida não foi a mesma desde 2001. Antes disso, era normal, filhos, trabalho e casa, amigos”, contou Angelica Lozano, 39, natural de Cartagena, na Colômbia, que mora no Brasil desde fevereiro de 2011. Antes de chegar ao País, mais especificamente a Manaus, capital da Amazônia, ela passou por muitas cidades da Colômbia, perseguida pe- los paramilitares.

Um relatório da Anistia Internacional, publicado em 2012, afirmou que “apesar de sua suposta desmobilização, os grupos pa- ramilitares, rotulados pelo governo como “bandos criminosos” foram responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como homicídios, desaparecimentos forçados e operações de ‘limpeza social’ em áreas urbanas carentes. Algumas dessas violações foram co- metidas com a conivência ou com o consen- timento das forças de segurança. Suas vítimas eram principalmente sindicalistas, defensores dos direitos humanos e líderes comunitários, assim como representantes de grupos indígenas ou comunidades afrodescendentes e camponesas”.

Desplazada dentro do próprio País, ou seja, tirada à força de lá, Angelica começou a traçar o caminho percorrido por muitos colombianos, bolivianos, peruanos, paraguaios, mas também por africanos, sírios, haitianos: a es- trada promissora e difícil da migração. “Desde 2011, minha vida mudou, primeiro porque me casei; segundo, comecei a trabalhar como ad- ministradora dos negócios do meu esposo e foi ali que aconteceram vários incidentes na Co- lômbia. Os paramilitares achavam que tínhamos muito dinheiro e que devíamos ajudá-los. Como eu me neguei, começaram a chantagear e ameaçar a minha família”, explicou a colom- biana que, após mudar várias vezes dentro do próprio País, atravessou a fronteira nacional.

Como acontece em alguns bairros das periferias brasileiras, também na Colômbia existe um serviço de proteção paralelo, lá, chamado de vacina. “Os comerciantes que moram em estados onde os paramilitares têm suas forças ilegais, recebem proteção em troca de dinheiro. Essa segurança é para os comerciantes não serem assaltados ou, se acontecer, por grupos diferentes, eles mesmos solucionam a situação.”

O relatório do escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) sobre a Colômbia, publicado em janeiro de 2012, reconheceu que “importantes iniciativas legislativas e de políticas públicas foram empreendidas e violações dos direitos humanos foram condenadas pelas au- toridades públicas”. Porém, o relatório reconheceu também que “tais esforços ainda terão de alcançar os objetivos esperados em nível local”.

O mesmo relatório notou ainda que “um número significativo de violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário continua sendo cometido, sobretudo por grupos armados ilegais, mas também, supostamente, por agentes do Estado” e que essa situação estava provocando “sérias consequências humanitárias para os civis”.

Angélica, porém, decidiu denunciar e viveu o quase sequestro de uma das filhas. “Come- cei a fazer parte da comunidade de desplazados pela violência. Foi quando decidi sair da Colômbia.” Ela enfrentou vários maltratos psicológicos por causa das ameaças dos paramilitares que tentavam levar seus filhos ou até mesmo matá-los. “Passei um tempo na fronteira do Amazonas e decidi vir ao Brasil.” Assim, com os três filhos, Jaime, 7, Maria, 13, e Dina, 17, Angelica viajou quatro dias de barco. “Eles nunca haviam viajado em navio. Foi muito confuso, entre tristezas e alegrias, desesperanças e novas ilusões”, desabafou.

Entender os fluxos migratórios no Brasil é uma tarefa que exige tempo e uma escuta atenta. Tarefa essa que a mídia brasileira nem sempre tem colaborado a executar. A chega- da de um grande número de haitianos em São Paulo, por exemplo, vindos do estado do Acre, foi noticiada por alguns meios como “invasão” e, se por um lado, mobilizou a população para doações, por outro, causou na população uma situação de desconforto e medo.

O que dizem sobre os migrantes por aí?

“Vieram para tirar nosso trabalho”, “Temos que ajudá-los, coitados” ou expressões seme- lhantes são utilizadas em Curitiba (PR) para as pessoas que chegam à cidade e procuram traba- lho ou algum tipo de auxílio. Já no Vale do Je- quitinhonha, região nordeste de Minas Gerais, os trabalhadores migrantes são conhecidos, por exemplo, por cortadores de cana, ‘boia-fria’, e as mulheres de migrantes como ‘viúvas de maridos vivos’. Os relatos são de Elizeste Santana e Cleia de Fátima Silva, ambas do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM) Nacional.

Os termos para designar as situações de migração interna, imigração, refúgio, asilo ou apátrida são muitas vezes confusos e causam desconforto e problemas de discriminação e exclusão. Grupos que trabalham com migrantes em todo o Brasil, em entrevista à reportagem, constataram que os enfoques dados, tanto pelas grandes redes de comunicação quanto as locais, são superficiais e, em alguns casos, expõe visões restritas e estereotipadas.

Maria das Graças Ferreira, professora e membro do SPM no Piauí, explicou que a mí- dia local ocasionalmente fala do migrante. “Po- rém, quando é provocada a falar, nem sempre dá ênfase ao grande problema da migração for- çada que permeia todo o Estado do Piauí.” No Amazonas, Valdecir Mayer, missionário scala- brianiano disse que a imprensa assume papéis diferentes, “ora apoia e conscientiza a população para ser solidária, ora fala como se os migrantes fossem trazer problemas de desemprego, saúde e violência”.

Para Mario Geremia, também missionário scalabriniano no Rio de Janeiro, “a grande mí- dia utiliza a mesma linguagem em todos os lu- gares porque tem sua própria ideologia xenófo- ba e sensacionalista. Ao mesmo tempo em que apoia e fala bem da migração seletiva de mais ou menos 70 mil novos imigrantes que são in- corporados ao mercado de trabalho qualificado, ela anuncia e divulga como invasão, os pequenos grupos de haitianos, bengaleses, africanos que estão fugindo da fome e da guerra para buscar vida digna aqui no Brasil”.

Mário afirmou que existe um discurso xe- nófobo que faz relação com a eugenia racial e o medo de contaminação. “Com a imigração espontânea e forçada por causas econômicas, naturais, políticas e sociais, a mídia é dura, xenó- foba, sensacionalista e atrasada, pois não percebe a riqueza do diferente e muito menos o aporte que os imigrantes sempre deram e estão dando ao Brasil em todas as dimensões.”

A reportagem ouviu também agentes do SPM de Goías, Distrito Federal, Minas Gerais, Pernambuco e São Paulo.

Todos foram unânimes em afirmar que o migrante em geral é retratado como um número e, na maioria das vezes não há informações mais aprofundadas que superem os estereótipos.

Denise Cogo, Maria Badet e um grupo de mais 18 pesquisadores elaboraram o “Guia das

Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para Comunicadores – Migrantes no Brasil”, publicado em 2013 pela Universitat Autonoma de Barcelona e pelo Instituto Humanitas Unisi- nos. O Guia orienta os comunicadores e oferece ferramentas de pesquisa. Sobre a situação dos haitianos, por exemplo, ele recomenda “explicar o contexto em que ocorre o aumento dos fluxos migratórios. Informar que os haitianos não estão no Brasil na condição de refugiados, mas que re- ceberam vistos humanitários, e produzir reportagens que ajudem os brasileiros a conhecer mais a sociedade e a cultura haitiana”.

Angelica contou que, muitas vezes, já se sentiu discriminada assistindo algum noticiário na tele- visão brasileira sobre migração. “Essa sensação está em toda parte, nos avisos, nas propagandas: “só para brasileiros”, por exemplo. Como refugia- dos, temos os mesmos direitos, mas parece que sempre seremos estrangeiros e nunca imigran- tes. Eu já passei por coisas parecidas, só que eu simplesmente ignorava. Vários colegas de traba- lho me subestimaram quando eu cheguei, era a ‘coitada’ para eles. E não me contratavam porque diziam que tinham muitos brasileiros precisando de trabalho e que eu, por ser imigrante, não tinha direito. Mas, depois de um tempo, você só vive ig- nora comentários e faz valer a pena morar em ou- tro lugar. Fui também agredida psicologicamente com o idioma. Todo mundo ri às suas costas por- que você não pronuncia as palavras certas, mas eu não me importo, eu consigo rir também.”

Leis e políticas públicas

A versão final do Anteprojeto de Lei de Migrações foi entregue no Ministério da Justiça (MJ) na sexta-feira, 29 de agosto. O documento foi elaborado por uma comissão de especialis- tas do MJ e apresentado, depois de várias dis- cussões e audiências públicas, numa coletiva de imprensa no dia 26 de agosto no auditório da Missão Paz, no Glicério. A instituição mantém a Casa do Migrante que hospeda imigrantes de diferentes lugares do mundo.

Desatualizado, o chamado “Estatuto do Es- trangeiro” é um dos dificultadores para que o País estabeleça políticas públicas para acolhida e enca- minhamento dos imigrantes no Brasil. O Estatuto, de 1980, foi escrito antes da Constituição de 1988 e não prevê, por exemplo, que imigrantes votem no país onde residem.

Leonir Chiarello, diretor executivo da Rede Internacional de Migração Scalabrini, afirmou que “o tema principal a ser discutivo é a governança das migrações que envolvem violência e proteção. Ainda que o desemprego não esteja resolvido no País tem-se oferecido oportunidades de trabalho para países com situações ainda piores. O Brasil é visto como um destino de possibilidades. É importante que as instâncias de governo possam dialogar com a sociedade civil para pensar essas políticas”.

Jorge Peraza, da Organização Internacional para as Migrações (OIM) também enfatizou que o propósito é refletir sobre o potencial papel da sociedade civil para contribuir com o desenvol- vimento da renda em sentido regional, nacional e global. “Destacar os aspectos positivos dos processos migratórios e contribuir para as pessoas que vivem esses processos. É necessária a articu- lação da sociedade civil para que haja ações mais efetivas. direitos humanos e livre mobilidade”, disse.

“Os imigrantes não existem: se você não vota, você não importa, então, você não conta, sua opinião não tem valor, o demais é só papo”, expres- sou Angelica, que quando chegou ao Brasil, não recebeu nenhum tipo de auxílio do governo. Na fronteira, ela foi encaminhada pela Cáritas e pelo Alto Comissário das Nações Unidas para Refugia- dos (Acnur).

“Fui para um albergue. Meus filhos estavam muito nervosos e a filha mais velha não queria fi- car. Tinha pessoas de todos os estados sociais, sa- ídas da cadeia, doentes, moradores de rua, entre outros. Todos dormiam em dois quartos enormes, com muitos beliches. Minha filha chorou por ho- ras e depois se acalmou, graças à ajuda da assis- tente social do albergue. Foi muito traumático e triste no começo, depois as pessoas viraram nossos amigos e sempre estavam se preocupando com a gente”, lembrou, emocionada.

Ela recebeu auxílio de uma congregação das ir- mãs scalabrinianas quando procurou ajuda deses- perada na Igreja dos Remédios, local de referência para os imigrantes em Manaus. Depois, com insis- tência, Angelica conseguiu uma vaga de estagiária na Cáritas e hoje é membro da coordenação do SPM na capital amazonense. “Meu maior sonho é ter minha própria casa para mim e meus filhos, poder ficar num só lugar que seja meu, em que eu me sinta em casa.”


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