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Migrexistimos

Os chinelos nos pés e o desejo de caminhar. O cálice de madeira e a partilha da Palavra. O sítio no meio de uma cidade que está entre as mais violentas do Brasil. Mas as casinhas em círculo e a horta, as laranjeiras e as grandes jaqueiras não deixam desesperar. Inácio, com 97 anos, subiu na cadeira e falou, como quem sabe o que realmente importa, da boa comida servida em abundância nos dias que se seguiam. Ele sabe que, para compreender Deus, é preciso também contemplar a possibilidade de não ter, é preciso imaginar-se no vazio. Afinal, Deus mesmo se esvaziou (Fl 2).

Angélica, a colombiana de Manaus veio acompanhada de Jean, haitiano que mora há 4 anos no Brasil. À mesa, ele falou das questões políticas no Haiti. Falou da invasão dos Estados Unidos, das interferências francesas, do desejo que eles têm de reconstruir com as próprias mãos, o seu país. Júlia chorou. Ela tem 17 anos e, como numa metáfora da juventude hoje, chorou ao falar de si, das suas dificuldades em dizer para todos em que acredita sem ser desconsiderada em Goiânia ou no Vale do Jequitinhonha.

Sentada ao lado da avó, Helena, Júlia mostrou a camiseta bordada por ela, com uma moça negra de tranças e sorri, como quem sabe qual pele vale a pena vestir. No fundo, tocar a pele faz parte do coletivo anseio de quem se reúne onde há pouco tempo estiveram reunidos também centenas de indígenas, em busca de seus direitos.

E tocar a pele significa conhecer as dores e os sorrisos daqueles que vêm orientados pelo sonho. Sim, quando o sonho cabe na mala, a pele que sorri ou sofre porque não tocou a música para dançar sua música preferida. Dançar para alguns significar também amar e ser amado. A dança, de alguma maneira, exprime o desejo de ser sem explicar, de festa sem prêmio ou aniversário, de alegria sem motivo.

E, se não há festa sem motivo, é porque há tempo sem graça ou trabalho sem pausa. A questão do trabalho e o medo de que ele seja uma força explorada sem direitos e deveres a partir da humanização, causam medo em quem conhece os meandros das oficinas de costuras, dos canaviais ou dos meninos que enrolam fumo por R$ 0,1.

Mas, quando a “liberdade vem e canta”, a gente aprende a balbuciar algo que encanta também. Aprende a contar o que vivemos, a compartilhar, defender e notificar quando necessário for. Liberdade, liberdade, de quem não tem medo de dizer que igualdade não é feita de partes iguais e que o patrão pode ser sim Deus em sua bondade, mas pode ser também uma pessoa injusta que dispõe das pessoas quando e como quer. Por que existem contradições saudáveis que são como feijão de corda, verde e maduro ao mesmo tempo.

Se somos trabalhadores da primeira ou da última hora, não importa. Se trabalhamos mais ou menos uns que outros, também não. Importa termos olhos sem fronteiras, braços sem amarras, pernas cansadas para redes em quaisquer árvores. E se “o dotô” se acha mais esperto que o caipira, a ironia também ensina a sorrir da própria autonomia que pode levar a não perceber mais a escravidão que mata. Se não soubermos partir, não adianta ir.

“Missão é partir. É quebrar a “crosta do egoísmo”, como ensinou dom Helder e escreveu o padre no folheto que ele entrega na missa e lê com seus fiéis. O que o padre sonha é que todos sejam missionários. Sim, a pastoral que cresce entre temporários lugares, que luta pelos direitos dos imigrantes e que se mete nas vielas urbanas, não quer privilégios, nem condecorações. Ele quer ser coletivo, quer ser comunhão, quer existir, em qualquer lugar, neste mundo.

Nayá Fernandes

Jornalista, cozinheira e ciclista nas horas vagas.

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